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domingo, 28 de abril de 2013

Quero escrever o borrão vermelho de sangue



Quero escrever o borrão vermelho de sangue
com as gotas e coágulos pingando
de dentro para dentro.
Quero escrever amarelo-ouro
com raios de translucidez.
Que não me entendam
pouco-se-me-dá.
Nada tenho a perder.
Jogo tudo na violência
que sempre me povoou,
o grito áspero e agudo e prolongado,
o grito que eu,
por falso respeito humano,
não dei.


Mas aqui vai o meu berro
me rasgando as profundas entranhas
de onde brota o estertor ambicionado.
Quero abarcar o mundo
com o terremoto causado pelo grito.
O clímax de minha vida será a morte.


Quero escrever noções
sem o uso abusivo da palavra.
Só me resta ficar nua:
nada tenho mais a perder.

Clarice Lispector


quarta-feira, 24 de abril de 2013

Fragmentos do Livro A Hora da Estrela



Se tivesse a tolice de se perguntar “quem sou eu” cairia estatelada no chão (...)
Só uma vez se fez uma trágica pergunta: quem sou eu. Assustou-se tanto que parou completamente de pensar. (...)
“Essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver. Não, sabia para quê, não se indagava. (...)
Sua vida era uma longa meditação sobre o nada. Só que precisava dos outros para crer em si mesma, senão se perderia nos sucessivos e redondos vácuos que havia nela. (...)
Encontrar-se consigo própria era um bem que até então ela não conhecia.(...)

Clarice Lispector



Vem - Vanessa da Mata



Brincando de editar vídeo...

Somaia Gonzaga

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Perfumes



Nos meus olhos há lágrimas. Lágrimas que olham para a porta da sala, testemunha viva das malas que há pouco exilaram junto de ti. Porém a ausência não tolhe o rastro do teu perfume favorito, teimoso, que insiste ficar como seu eu fosse a viúva duma fragrância que fere e causa dor.
Não há como negar e me sinto a chaga do mundo, ferida que não cicatriza, a dor que persiste, mas que diz que há vida lá fora e sons como esses que eclodem na janela, gotas duma mesma chuva que se inunda dentro de mim
Ainda parada à passagem da sala, penso, repenso, e é tanta a dor, o que faço?
Maldito seja o que não não sai de dentro de mim! Maldito sejas tu e o teu perfume preferido que o meu amor abomina, mas que persiste dentro de mim e ganha os quartos e corredores a cada um dos meus passos, sufocando-me, confundindo, me assassinando.
Logo, me sinto mal e não mais quero respirar esse passado de poucas horas, então saio e vou à procura de ar, algum lugar que me faça sentir livre do peso da  idolatria que nutro por ti.
Pela mesma porta da sala alcanço o quintal e me misturo às águas da chuva e à fúria dos raios e trovões. Sim, sei que tenho pavor do estrondo que produzem, mas, mesmo que me amedrontem não arredo pé. Portanto deixo a chuva molhar minhas roupas, o rosto, tocar meus lábios num momento que não é bom, é agonia, é meu desespero, destempero que me lesa frações ocultando descobertas, relegando-me ao melancólico descaso do amor.
Ainda estou frágil sob os rancores duma tempestade que mal inicia e tento evitar o desalento e não consigo, já que  desencontrada de mim sinto-me distante daquilo que fui.
Sem saber como agir retorno para dentro da casa, e lá inesperadamente o teu cheiro me nauseia, enoja, e que sem motivo lembro dos teus olhos, e eles são lindos, mas estão tão longe.
E é esta imagem de olhar vagabundo que tatua minhas certezas e me faz concluir que estando próximo estiveste tão ausente que jamais notaste a mulher que te amou.
Sim, essa é a  verdade e estou tão molhada e tonta como barata intoxicada, então entro e saio de quartos, inspeciono corredores e retorno à sala acompanhada dum choro que me pede paciência e a necessidade do tempo. Não preciso de tempo! Irrito-me num lamento de leoa ferida à merce do último disparo. Surpreendentemente foi o momento que as gotas estancam e estacionam em meus lábios e me  incomodam  obrigando-me tocá-las com a ponta da língua, e lhes sinto o gosto de sabor quase insosso, sinal de que tudo é passível de mutação, pois já não deslizam tão salgadas.
Aturdida dirijo-me ao banheiro e acolho uma toalha de rosto, felpuda, e com ela vou à cozinha e preparo algo. Feito, retorno para sala com uma pequena caneca à mão e toalha ao ombro. Mas ali alguma coisa mudou e está diferente, pois não mais ouço o barulho da chuva e nem recende no ar o odor do teu perfume. Penso nisso por mais alguns instantes e um riso nervoso me escapa da boca junto de  duas lágrimas retardatárias; talvez teu rastro foi igualmente covarde e se dobrou a um  estimulante aroma de coisa fresca. - Boa viagem querido! - Murmuro-te o meu desejo e enxugo com as felpas aquele solitário par de gotas.
Agora descanso a toalha no braço do sofá num mesmo instante que desponta em mim esse sorriso triste, nostálgico,  conformado até, mas voluntarioso quando sorvo um longo gole do café ainda quente.


Véio China