Minha gula pelo mundo: eu quis comer o mundo e a fome com
que nasci pelo leite — esta fome quis se estender pelo mundo e o mundo não se
queria comível. Ele se queria comível sim — mas para isso exigia que eu fosse
comê-lo com a humildade com que ele se dava. Mas fome violenta é exigente e
orgulhosa. E quando se vai com orgulho e exigência o mundo se transmuta em duro
aos dentes e à alma. O mundo só se dá para os simples e eu fui comê-lo com o
meu poder e já com esta cólera que hoje me resume. E quando o pão se virou em
pedra e ouro aos meus dentes eu fingi por orgulho que não doía eu pensava que
fingir força era o caminho nobre de um homem e o caminho da própria força. Eu
pensava que a força é o material de que o mundo é feito e era com o mesmo
material que eu iria a ele. E depois foi quando o amor pelo mundo me tomou: e
isso já não era a fome pequena, era a fome ampliada. Era a grande alegria de
viver — e eu pensava que esta sim, é livre. Mas como foi que transformei sem
nem sentir a alegria de viver na grande luxúria de estar vivo? No entanto no
começo era apenas bom e não era pecado. Era um amor pelo mundo quando o céu e a
terra são de madrugada, e os olhos ainda sabem ser tenros. Mas eis que minha
natureza de repente me assassinava, e já não era uma doçura de amor pelo mundo:
era uma avidez de luxúria pelo mundo. E o mundo de novo se retraiu e a isso
chamei de traição. A luxúria de estar vivo me espantava na minha insónia sem eu
entender que a noite do mundo e a noite do viver são tão doces que até se dorme.
Clarice Lispector, in Crónicas no 'Jornal do Brasil (1971)'
Foto editada por euzinha!
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