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sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A Maçã no Escuro. Ed. Rocco. Pp. 163-164.




Mas o certo é que na desordem de um primeiro encontro houve um momento em que os dois, enfim esquecidos do que penosamente queriam copiar para a realidade, houve um momento não preparado por ambos, dom da natureza, em que ambos precisaram saber por que o outro era o outro, e se esqueceram de dizer “por favor”; um momento em que, sem um injuriar o outro, cada um tomou para si o que lhe era devido sem que um roubasse nada do outro, e isso era mais do que eles teriam ousado imaginar: isso era amor, com o seu egoísmo e sem este também não haveria dádiva. Um deu ao outro a avidez em ser amado, e se havia certa tristeza em submeter-se à lei do mundo, esta obediência também era a dignidade deles. (…)
Foi com um ar obediente e agradecido, como o de uma mulher, que ela avisou a Martim que ia remendar suas roupas. Sobretudo, obstinada, o que ela queria era prolongar-se no ambiente seguro que o homem, vivendo no depósito, ali terminara por criar: esporas no chão, a foice, botas enlameadas, mundo palpável. Pegando, calma, nas roupas a emendar, ela sentiu uma felicidade muito menor do que era capaz de sentir, mas tratava-se dessa coisa que se quer: concreta. Então ela o olhou: obrigada por você ser real, disseram seus olhos abertos.
O homem não entendeu, mas inflou um pouco o peito. Quanto a ela, agora poderia sem mentir usar a palavra amor, e com tanta esperança ingênua como se o desconhecesse. (…) Então a moça se levantou, como dando ao homem uma ordem de ir embora e deixá-la só.
— Você é meu dono, dizia o modo altivo e mudo como estava de pé, serena e sem humildade.
Ele pareceu entender, e ele não queria ser dono de ninguém, e assobiou disfarçando, depois olhou para os próprios sapatos: mulher era sempre mais impudica que um homem, ele encabulou. Ela estava nobre. “Teve o que quis”, pensou Martim ofendido na própria castidade e disfarçando-se com um novo assobio desajeitado. “Você é meu dono”, dizia com tirania o modo como ela estava de pé; ele grunhiu assentindo, incomodado, com vontade de se livrar dela. Os ombros dela eram finos e quebráveis, a pele de criança, e, como se ele tivesse quebrado a atualidade da moça, havia algo de antigo nela. (…)
E talvez porque sua submissão àquela mulher fosse o modo como ele próprio a submetia, ao sair do depósito Martim se tornara poderoso e vivido, e com alguma insolência.
Martim respirou profundamente como se até agora tivesse sido amordaçado. É que era doce e poderoso um homem sair e uma mulher ficar. Assim provavelmente é que deviam ser as coisas.

Clarice Lispector


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